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20.07.2015 08:56

Dicas do professor Germano: crase
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Crase: Caetano Veloso entende do riscado

 

Entender do riscado é dominar bem um assunto, ser competente no que faz. Em meio ao povo, já ouvi algo semelhante: fique tranquilo, meu amigo, que eu entendo da poda. O homem simples sabe das coisas...

 

Voltamos a pisar o tema da crase impelidos por significativa e oportuna contribuição de Caetano Veloso. Foi estampada – com o grifo que merece – na revista Veja deste 1° de julho. Em um post de sua equipe, o compositor quis pôr o pingo nos is numa construção que maltratava o uso do acento indicativo de crase.

 

Fiquemos com o texto do cantor, em que corrige esta dedicatória: Homenagem à Bituca. Diz ele: Não há crase (...), o ‘a é apenas a preposição nesse caso. Bituca (apelido de Milton Nascimento) não é uma mulher, não é um nome em que você pudesse usar o artigo feminino antes. (...) Esse é um erro que eu acho idiota. (...) Tem que saber português.

 

Caetano, não o ignoramos, dedica-se à arte da composição musical com mestria. Quem é bom, diz o provérbio, já nasce feito! De sobrelevar sua última frase: Tem que saber português. Quanta verdade! Por que detratamos tanto nossa língua, contentando-nos com um estudo superficial e pedestre? Há quem suponha que o cantor pegou pesado, ao classificar o deslize de idiota.

 

Devagar com o andor! O adjetivo não nos atinge. Com uma dose de tolerância, nem mesmo atinge sua equipe. O erro, esse sim, é idiota – descabido, inaceitável, intolerável. Ressalve-se que seu significado, à luz da etimologia, conspira a favor de Caetano. Viajemos à Grécia de Sócrates e Platão em busca do sentido de idiótes. Equivalia ao campesino, ao homem simples.

 

Se ao homem da cidade o qualificavam de urbano, ao homem do campo o denominavam idiótes. Na marcha do tempo, urbano passou a corresponder ao refinado, polido. Batizado e crismado com os ares da civilização. Idiota, de sua vez, aflora em comentários desabonadores, cheirando a imbecil, ignorante ao extremo. Ficou esquecida a acepção primitiva, sei disso. Mas... limpemos a barra de Caetano...

 

Em parceria, Mário Sérgio Cortella conferiu a uma de suas obras este título: Política para não ser idiota. Às voltas com sua vidinha particular, o idiota, segundo o grego antigo, pouco se interessava pelas coisas da cidade. Leia-se: pelas coisas da pólis, portanto da política.

 

Nesse rumo, o filósofo conclui que a política é entendida como convivência coletiva mesmo. Se viver é con-viver, o idiota – interessado tão só por seu mundinho – não se coaduna com o conceito de política aí expendido.

 

Retornemos ao texto de Caetano: quanto à explicação do autor-compositor – homenagem a Bituca –, tudo perfeito. Acrescente-se contudo que, no que se refere aos nomes próprios femininos – ressalvado que não se trata do caso do post, como frisa Caetano –, o acento grave é, de certa forma, facultativo. Como assim? A depender do grau de maior ou menor familiaridade que tenha com a mulher a quem pretende fazer uma dedicatória, alguém poderá tanto escrever abraços à Lúcia quanto abraços a Lúcia.

 

Vamos lá. Escreveremos abraços à Lúcia / homenagem à Paula se se cuida de alguém muito próximo de nós: nossa colega de trabalho, nossa irmã ou pessoa que o valha.

 

No entanto, passaremos a grafar abraços a Lúcia / homenagem a Paula, agora sem o acento grave, para assinalar que essa pessoa não é de nosso relacionamento estreito. Nesse caso específico, porque distante de nós, quando a ela normalmente nos dirigimos nós o fazemos sem o artigo: Lúcia desponta no cenário político. Paula é competente servidora do Tribunal de Justiça. Nem uma nem outra gozam de nossa convivência. Por isso, usamos o nome próprio despido de artigo.

 

Demos outro passo. Na hipótese de nomes femininos de autoridades, pessoas famosas ou vultos históricos, é de bom-tom não recorrermos ao acento grave. Afinal, cogita-se de pessoas que não privam de nosso trato, afastadas de nosso convívio. Correta, então, seria esta frase: O leitor fez alusão a Dilma. No caso, em referência à presidente, o nome deve ser empregado sem o artigo feminino. Dado que a crase não se materializa, o uso do acento grave traduziria inadequação. Nesse mesmo rumo: O livro se reporta a Joana d’Arc. Se acentuássemos esse à, haveria presunção de familiaridade.

 

É de registrar ainda que, ao juntarmos ao nome feminino um adjunto – seja adjetivo, seja locução adjetiva –, o artigo passa a ser obrigatório e, de igual modo, o acento indicativo da crase. Numa dedicatória, faça-o sem receio: À inesquecível Lúcia, com estima. Vale por: Para a inesquecível Lúcia (preposição + artigo). Fica patente a atmosfera afetiva ditada pelo adjetivo, convite à presença do artigo.

 

Embora tenhamos centrado nosso foco nos nomes femininos, curioso é pontuar que até mesmo antes de nomes masculinos se pode empregar o acento grave. Para tanto, essencial é que haja a possibilidade de subentender um à moda (de), à maneira (de): Tinha um penteado à Neymar. Vestia à Pierre Cardin. Tem um estilo à Machado de Assis.

 

O mesmo sucederia no caso de estar subentendida qualquer palavra que designe nome de empresa, instituição ou coisa. Fique claro, no entanto, que essa elipse (apagamento do nome feminino) não deve ser algo forçado, inventado. Isso levaria os apressadinhos a escrever: Fui ‘à’ Santos, alegando estar subentendida aí a palavra cidade. Nada tão falso.

 

Por outras palavras, o nome recuperado existe realmente nessas denominações: Vou à (editora) Melhoramentos. Fui à (rua) Sete de Setembro. No jargão policial, volta e meia dizem: Fui à Homicídios. Aqui se faz alusão à Delegacia de Homicídios. Frases com apuro de linguagem.

 

Lembremo-nos: em português, os nomes de cidade são geralmente femininos e, quando desacompanhados de adjetivo/ locução adjetiva, empregam-se sem artigo. Daí: Vou a Santos. Fui a São Paulo. Acertado seria grafar ainda: Vou à Santos de Pelé. Fui à São Paulo da garoa.

 

Ao oferecerem a um juiz uma lembrança, por ocasião de seu aniversário, os assessores juntam esta dedicatória: Os servidores do Gabinete ‘à’ fulano de tal. Sem comentários... Botemos fogo nesse indecoroso acento. Enfeia de vez o presente.

 

Conclusão: o uso do acento indicativo da crase diante de nomes próprios de mulher é tido como facultativo. O que define nossa opção – Abraços à/a Lúcia – é a possibilidade de ser o nome determinado, ou não, por um artigo. E isso – já sabemos – está a depender de nossa maior ou menor familiaridade com aquela pessoa.

 

Basta!

 

Prof. Germano Aleixo Filho,

Assessor da Presidência do TJMT.