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14.08.2015 17:57

Dicas do Professor Germano: Trata-se ou tratam-se
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Trata-se ou tratam-se de exceções

 

 

Na linguagem jurídica, em pareceres e sentenças, uma dúvida sempre nos assalta: trata-se de embargos à execução ou tratam-se de embargos à execução? Não de hoje me solicitam uma luz que, de vez, ponha fim a esse impasse. Propositadamente, tenho passado ao largo deste tema para não enfrentar a indispensável nomenclatura. Já não dominamos – com clareza – termos e expressões amarrados à sintaxe.

 

Atentemos a estas construções: Trata-se de casos difíceis. Precisa-se de empregados. Acredita-se em óvnis. Nesse conjunto, os verbos devem ficar no singular. Compare-o com esta frase: Vendem-se carros usados. Uma olhadela põe às claras significativa diferença: além de estar o verbo no plural, ele não é seguido de preposição: de, em, a, por. Vender é verbo transitivo direto, condição obrigatória para apassivar uma oração. Esta se acha na voz passiva sintética, aquela em que o verbo transitivo direto se associa ao pronome apassivador se.

 

Fique acertado isto: na voz passiva, independentemente de termos um verbo transitivo direto, inexiste objeto direto. No caso a que nos referimos, a expressão carros usados, não antecedida de preposição, é o sujeito passivo: traduz o termo que sofre – por isso se diz paciente – a ação verbal. Essa, só essa, é a orientação da norma culta. Nos concursos públicos e nas peças jurídicas, é assim que devemos escrever. Deixemos o “vende-se carros usados” para a linguagem coloquial...

 

No conjunto encabeçado por “trata-se de casos difíceis”, o verbo é transitivo indireto, cujo complemento, chamado de objeto indireto, sempre é antecedido de preposição. Exatamente por causa da preposição, esse tipo de verbo não admite voz passiva. Daí, o que temos é voz ativa.

 

Baste-nos este entendimento: o verbo pronominal tratar-se – e outros a seu estilo – deve ser usado só no singular, mesmo quando o substantivo  que lhe  segue, regido  de  preposição,  esteja  no  plural. Portanto: Trata-se de embargos à execução.  Em construções que tais, dizemos que o sujeito é indeterminado. Não fiquemos chateados: haja terminologia!

 

Aí é que a porca torce o rabo! O que significa indeterminado? De modo simples, ocorre sujeito indeterminado quando, na oração, não há nenhum termo em condições de desempenhar o papel de sujeito. Logo, o sujeito não vem expresso. Ou porque não desejamos que ele seja conhecido, ou porque, de fato, nós não sabemos quem fez a ação verbal.

 

Suponhamos esta frase: Quebraram a vidraça. Embora alguém tenha praticado a ação de quebrar, não sei quem fez isso ou, ainda que saiba, prefiro não dizer. Aqui, o sujeito também é indeterminado.

 

Nos bons tempos do ginasial, aprendemos com nossos velhos e competentes professores que o núcleo do sujeito nunca poderá vir antecedido de preposição. Razão é esta: o sujeito comanda a oração, não podendo ser iniciado com preposição, sinal de dependência pura. No dia a dia isso também ocorre: o comandante do exército – ou o chefe de uma instituição – não se subordina a ninguém. Chefe é chefe! Conclusão: sujeito e preposição não se bicam. Um quer distância do outro.

 

Demos outro passo: o pronome que se associa ao verbo transitivo indireto recebe este nome: índice de indeterminação do sujeito. Índice significa sinal, prova de que, naquela oração, o sujeito está indeterminado. Nela, não há sujeito expresso porque o verbo é impessoal, nome que vale por sem pessoa, portanto sem sujeito.

 

Não há negar: mesmo na área forense, em que os traços da norma culta se fazem mais presentes, os aplicadores do direito, não raro, flexionam o verbo tratar-se seguido da preposição de. Nada disso. Só o singular se justifica: trata-se de delinquentes. Dizer ou escrever – tratam-se de delinquentes – é imperdoável delinquência perpetrada contra a língua de Camões e nossa. Façamo-lo com esta correção: Trata-se de casos omissos. Não se trata de provas robustas. Depois é só correr para o abraço!

 

Prestemos atenção nisto: estamos usando o verbo tratar-se em alusão a algo já falado. Ele se volta a uma referência anterior. Vejamos: Meu time contratou dois jogadores. Trata-se de dois atacantes.

 

Por outro lado, o verbo tratar pode encartar outras acepções: Os livros tratam da dívida pública. Ele é mais velho, mas nos tratamos de você. Neste lugar, tratam de enfermos. Por que não tratam de sua vida?!

 

Um parêntese obrigatório. Com tratar-se seguido da preposição de, são incorretas construções pessoais – com sujeito expresso, claro. Alinhemos alguns exemplos errôneos: A presente lide se trata de ação possessória. A parte-autora se trata de trabalhador rural. O fato trata-se de falsidade ideológica. Mais este: O caso trata-se de malversação de dinheiro público.  Em Portugal, vale lembrar, corre mais a ênclise: trata-se.

 

Quando isso ocorrer, a saída é promover um torneio, uma reformulação da frase, apagando o descabido sujeito.  Algumas opções, tendo como base o último exemplo: Trata-se de malversação do dinheiro público. Quanto ao caso, cuida-se de malversação... O caso configura malversação... O caso constitui malversação... Cogita-se de malversação... Construções, todas elas, limpas de senões.

 

Desses equívocos não escaparam nem mesmo alguns escritores e, por que não, alguns gramáticos. Num manual de redação jurídica, p. 741, no verbete insolvável, afirma o autor: “tal vocábulo trata-se de barbarismo a substituir por insolvente”. Não abramos sobre ele as torneiras da crítica: errar é humano.

 

O desembargador-autor Geraldo Amaral Arruda, em outro sentido atribuído ao verbo em análise, pondera ser acertado escrever: O autor, nesta ação, trata de seus direitos hereditários. Observemos que, no caso, o verbo não é pronominal. Outra construção de primor seria: Nesta ação, trata-se de direitos hereditários. Curto e seco: não inventemos moda e optemos por deixar este verbo sempre no singular.

 

A grande verdade é esta: um texto limpo não cai do céu. Alguém já afirmou que, num escrito, tão apenas 10% correspondem à inspiração. O restante – bons 90% – resulta de pura transpiração. É preciso que, para esta empreitada, capitalizemos toda nossa dedicação.

Razão tinha – e sempre terá – Saramago: Para mim, escrever é trabalho. Como vimos, esta matéria é bem complexa. Merece ser relida. Com dobrada e redobrada atenção.

 

Basta!

 

 

Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.