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03.03.2016 10:42

Dicas do Professor Germano - Défice
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 Aportuguesamento meia-sola

 

A última edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP data de 2009. Não muito se passou, a Academia Brasileira de Letras – ABL lança um Encarte de correções e aditamentos à 5ª edição. Até aí, nada de mais: imperfeições no mundo dos homens sempre haverá.

 

No entanto, seria cômico se não fosse doloroso o proceder da ABL no tocante ao aportuguesamento de alguns latinismos a que, com frequência, recorremos. A impressão que nos fica é que ela se mostrou um tanto ou quanto tímida, isso para não sermos ofensivos. Vamos lá...

 

Já não era sem tempo. O VOLP incorporou – peito e coração abertos – o termo défice, assim escrito. Forma, aliás, que não de hoje vinha sendo usada em Portugal. Em resumo, défice é o saldo negativo, o prejuízo havido. Segundo o prof. Cegalla, designa a diferença a menos entre a receita e a despesa.

 

Em adendo, registre-se que, ao lado de défice – com vestimenta apropriada ao meio –, o VOLP agasalha igualmente a forma com sabor latino: deficit.

 

Fiquemos com défice. É coisa nossa. O acento vem ao encontro do que se verifica em português. O que pega mal é fazermos um aportuguesamento pela metade: acentuar a palavra mantendo o t final, algo que não se coaduna com a índole de nossa língua.

 

Reforcemos: não é nada católico escrevermos déficit, grafia não abalizada pela Academia. Estaríamos acentuando um latinismo, lembrados de que o latim dispensava o acento. Ainda que assim, não nos escapa esta verdade: déficit era a forma que constava na edição anterior à atual. Águas passadas... Convém que a apaguemos de vez. Lixo nela!

 

Quanto a superávite, é assim que devemos escrevê-la? Antes fosse... O que ocorre – digamos sem temor algum – é que, neste caso específico, os ventos da ousadia e da coerência não sopraram sobre os luminares da Academia. Se esta encampou, sem tropeçar na língua, o vocábulo défice, agiu canhestra e inabilmente quando se tratou de aportuguesar o latinismo superavit.

 

Tomemos um pouco de fôlego. Ao consultarmos a 5ª edição do VOLP, deparamos com superávit, assim, nem mais nem menos. Pegaram o latinismo e tascaram sobre o indefeso um acento, apunhalando-o. Tão forte foi o golpe que, na errata virtual, resolveram riscá-lo da listagem do Vocabulário.

 

Digamos mais: isso se comprova, de igual parte, no encarte de correções da Academia. Eis o que ocorreu: excluíram superávit e, em seguida, jogaram-no, agora sem acento, para o campo que lhe é próprio: palavras estrangeiras.

 

Por que não dizê-lo: a reflexão profunda de quem deveria raciocinar foi miúda demais. Confusa. Bastaria que, de pronto, abraçassem a forma superávite. Se, de um lado, temos défice, por que não termos também superávite? A partir de agora, aos olhos da Academia, só esta grafia se justifica: superavit.

 

Não ignoramos: superavit – forma latina – significa o excesso de receita sobre a despesa. Ou, se quisermos ficar no feijão com arroz, é o saldo positivo. Será que, no ano que passou, houve superavit da balança comercial brasileira?

 

Incoerência de proceder? Não nos obriguem a falar disso, mas que existiu, existiu. Parece terem soltado as bruxas. Se o VOLP nos presenteou com défice – atestando um avanço –, age diferentemente em relação ao esperado e desejado superávite. Cá entre nós: a forma superavit, opção isolada, configura um atraso.

 

Quando nos socorremos de palavras de outro idioma, o melhor que fazer é escrevê-las em itálico. Embora assim, outra saída é grifá-las com aspas, negrito ou sublinha. Não esquecidos de que, no latim, o acento e o hífen nunca tiveram vez.

 

Na linguagem escrita, é de todo condenado o emprego da malfadada redundância: palavras que se repetem sem nada acrescentar. É algo que, longe de enfeitar, enfeia nosso texto. No comércio jurídico, estas mercadorias têm como destino a lata de lixo: se caso eu for, direito individual de cada um, decapitação da cabeça, empréstimo temporário. São de amargar...

 

Por idêntica razão, condenável demasia verbal é superavit positivo e défice negativo. Ambas, expressões bastante enraizadas no meio forense. Se devemos expurgar os gatunos da vida pública, expurguemos também nosso texto dessas impropriedades. Superavit, sempre será positivo. Conhecemos, por acaso, algum défice que não corresponda a um saldo positivo?

 

Outro latinismo que nos afronta é habitat. Atentemos para esta observação: em latim, não havia palavras oxítonas. Significa isso dizer que, se o vocábulo apresentar apenas duas sílabas, devemos sempre lê-lo como se paroxítona fosse.

 

Vejamos estes exemplos: apud (de acordo com; indica citação indireta), caput (cabeça de um artigo de lei), testemunha de visu (de ter visto), in albis (em branco: pronunciemos “inálbis”), pari passu (a passo igual, lado a lado). Disso tudo se infere que nunca devemos pronunciar habitat. Correto é apenas isto: habitat. Proparoxítona.

 

Quem sabe, na próxima edição, a Academia – um pouco mais ousada – venha a nos brindar com um hábita. Por sinal, cuida-se do melhor aportuguesamento deste latinismo. A despeito do VOLP, os dois dicionários mais comuns – Aurélio e Houaiss – acobertam, ao lado da forma latina, a grafia hábitat. Vale a observação que fizemos quanto a superávit. Seria um remendo lambão. Hábitat também constitui serviço malfeito: acentuaram um latinismo. Pra quê?

 

Fundamental é vincar que mais apropriado teria sido se esses dicionaristas tivessem registrado o desejado hábita. Dia virá em que esta forma haverá de triunfar...

 

Alimenta-nos a convicção de que, se a palavra da Academia deve ter força de lei – a que deveríamos prestar obediência –, isso não a exonera de incidir em equívocos.

 

No caso desses três termos, a proposta do VOLP é que nos limitemos a défice – sendo igualmente aceitável o latinismo deficit –, ladeados das formas latinas superavit e habitat. Para um mesmo problema, a princípio a Academia recorreu a três saídas diversas: défice, superávit – depois excluída, passando a ser grafada sem acento: superavit – e, isoladamente, o latinismo habitat.

 

Pena mesmo é que os acadêmicos não tivessem adotado formas com roupagem bem nossa: superávite e hábita, ladeando o já acolhido défice. Teria, entre outras, esta vantagem: as pessoas mais simples – de mãos dadas com muitos dos letrados – não cairiam na cilada de pronunciar o despropositado habitat, como se fosse oxítona. Jamais nos esqueçamos disto: certo é habitat, proparoxítona.

 

Basta!

 

Cuiabá, MT, 3-3-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.