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Poder Judiciário de Mato Grosso

 
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21.03.2016 14:15

Dicas do Professor Germano - Os autos
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  Os autos baixou ou baixaram a cartório?
 

O texto desta coluna se presta a que nos debrucemos sobre algumas palavras que se revestem de sentido diferente quando a elas adicionamos a marca do plural. Parecem-nos até arapucas. Apropositadamente, pontifica o escritor Ambrose Bierce: A gramática é um sistema de ciladas cuidadosamente preparadas.

 

         Há poucos dias, dizia-me um amigo, convencido de que a correção era sua fiel companheira: estou com uma dor danada na costa. Desconhecia ele que costa, quem tem, é o Brasil. No singular, o vocábulo é sinônimo de litoral, região situada à beira-       -mar: Como é bela a costa brasileira! Em Santos, muitos navios estavam ancorados na costa. Isto vem a calhar: o Paraguai e a Bolívia não têm costa.

 

         Costas – agora no plural – é a parte posterior do tronco humano, o dorso. Portanto, nós não temos costa, temos costas. Daí o correto: Estou com dor nas costas. Desejo vê-lo pelas costas. Já não aguento carregá-lo nas costas. Ele me virou as costas. Um crime horrendo: foi apunhalado pelas costas.

 

Essa variação semântica se dá com outros substantivos. Honra, por exemplo, diverge de honras. No singular carrega este sentido: dignidade, bom nome, probidade. Já no plural é distinção, homenagens, honraria. Aquele juiz é conhecido por sua honra ilibada, por isso se faz merecedor de altas honras.

 

Mais uma passada: quando no plural um termo, com ele devem concordar todas as palavras associadas: pronomes, adjetivos, artigos. Vejamos: Alguns autos antigos ficaram em cartório. Cabe a ele pagar as custas do processo.

 

A demolidora maioria dos autores ensina que férias, no plural, corresponde a descanso. Quando no singular, féria significa remuneração, seja diária, seja semanal, seja mensal: Levaram-me a féria de hoje. Vale por: roubaram-me o salário de um dia de trabalho.

 

Perguntemo-nos: é possível termos uma boa férias, curtirmos feliz férias? Certamente que não. Se, nesse sentido, usamos o vocábulo só no plural, no plural devem estar seus adjuntos: tivemos umas boas férias, curtimos felizes férias. Igualmente: férias coletivas, férias remuneradas. Passei minhas férias no Nordeste.

 

Curioso é observar que os dicionários latinos já documentavam férias no plural – feriae – com esta acepção: repouso em honra dos deuses. Os trabalhadores – após longo período de trabalho – são dignos de suas sonhadas férias. Como se deuses fossem. Feriado, de sua vez, é o dia consagrado ao lazer, dia em que estamos em festa.

 

Voltemos nossa atenção para o caso que abriu esta coluna: autos. Agasalha, no plural, o sentido de peças do processo. É o conjunto ordenado dessas peças. Correto, portanto, é que escrevamos: Os autos baixaram a cartório. Igualmente: Os autos foram encaminhados ao juiz. Os autos estão em cartório.

 

A frase em comento – Os autos baixou ou baixaram a cartório? – suscitava indecisão quanto à concordância verbal: é a concordância do verbo com seu sujeito. Se, no singular, dizemos “a casa caiu”, no plural apropriado será “as casas caíram”.

 

Nos tempos de ginásio, aprendemos um mínimo de análise sintática, matéria que principia a ser objeto de museu. Ao menos isto ficou: o sujeito governa seu verbo. Daí a concordância, imposta pelo sujeito: Os autos baixaram, isto é, retornaram a cartório.

 

Acertado é escrever: Prossigam-se os autos. Revele-se que esta frase traduz voz passiva, podendo ser transformada nestoutra: Os autos sejam prosseguidos. Isto é, sequenciados, levados adiante. Na voz passiva, o sujeito recebe a ação.

 

Quando usamos tão somente o verbo – Arquivem-se. –, subentende-se aí o sujeito feitos ou autos. Corresponde a esta: (os autos) sejam arquivados. No caso, poderia ocorrer também o singular, a depender do contexto: Arquive-se. Isto é, seja arquivado (o feito, o processo).

 

Mancada – e das graúdas – cometemos quando construímos algo assim: Publique-se as sentenças quando vier os autos a cartório. Xô! Vade retro, satanás! Dois erros fatais numa mesma oração. Passada a limpo, expurgados os senões, esta deve ser a frase: Publiquem-se as sentenças quando vierem os autos a cartório. Afinal, sentenças e autos constituem sujeito dos respectivos verbos. Sujeito no plural, verbo no plural.

 

Auto, no singular enfeixa um sentido outro. Na linguagem técnico-processual, segundo Maria Helena Diniz, em seu Dicionário jurídico, auto é a descrição autenticada e circunstanciada dos fatos ocorridos no processo e dos atos processuais. Por isso nos referimos a auto de apreensão, a auto de corpo de delito, a auto de infração, a auto de partilha.

 

Comum é a expressão auto de prisão em flagrante. Expressão tecnicamente correta. Nada de querermos inventar. Aludir a auto flagrancial é de doer. Quem foi o autor desta pérola? Por que recorrermos ao absurdo, ao empolado? Escrever certo – saibamos disto – é melhor do que escrever bonito.

 

A frase que encima esta coluna traz uma locução adverbial: a cartório. Vem destituída de artigo porque o substantivo cartório é genérico. Baixar, no caso, é verbo de movimento: exige a preposição a. Carrega o sentido de retornar. Se a palavra cartório viesse especificada, o artigo definido seria de lei: Os autos baixaram ao Cartório de Registro de Imóveis.

 

Diz o prof. Kaspary, no delicioso Habeas verba, que baixa, na linguagem técnico-processual, é o retorno dos autos, do grau superior para o juízo originário, após o julgamento do último recurso cabível e interposto. Insatisfeitos, consultemos o art. 510 do CPC.

 

No mercado jurídico, outras palavras há que se distinguem semanticamente, ora no singular, ora no plural. Embargo é apenas obstáculo, medida contra algum ato. No sentido de recurso processual, preferível é usá-lo no plural. O CPC, artigo 535, é claro: Cabem embargos de declaração... Em seguida, o 536 confirma: Os embargos serão opostos...

 

Custas, no sentido técnico de despesas com processo judicial, só se justifica no plural. Daí as custas dos serviços forenses. Atenção: na locução prepositiva – à custa de –, notadamente na linguagem jurídica, prefiramos o singular. Coloquialmente, esbarramos com às custas de: O genro vive às custas do sogro.  Jamais nos esqueçamos disto: os textos jurídicos devem se submeter ao padrão mais limpo: Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, [...] (CC, art. 884)

 

Fechemos esta coluna. Com palavras à feição de autos, custas, férias e embargos, será considerada imprópria a concordância no singular. De modo específico para o caso em análise, correto é: Os autos baixaram a cartório. Os autos foram encaminhados ao Cartório de Títulos e Documentos. Os autos estão no Cartório do Segundo Ofício. Apensem-se os autos. Eis como procede o CPC, artigo 809: Os autos do procedimento cautelar serão apensados aos do processo principal.

 

Basta!


Cuiabá, MT, 17-3-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.