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29.04.2016 14:44

Dicas do Professor Germano - Embora
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Muito embora: combinação despropositada

 

A língua portuguesa nos prega certas peças. De tanto serem nossas orelhas bombardeadas por sandices, às vezes da boca de pessoas gradas, até de portadores de diploma, passamos a acolhê-las como se verdadeiras fossem. Engolimos com casca e tudo.

 

Isso nos remete ao tema desta coluna. O uso de “muito embora”, à luz dos preceitos gramaticais, não conta com simpatias. Vai, não vai, topamos com a danada expressão por aí. Não só no domínio da fala. Nos escritos, parece conferir certo grau de superioridade a quem dela se socorre. Há daqueles que a julgam algo estiloso. Longe disso!

 

Principiemos com a palavra muito, advérbio de todos conhecido. Aqui é que bate o ponto. O Dicionário Escolar da Língua Portuguesa – DELP, de responsabilidade da Academia Brasileira de Letras, assim define advérbio: Palavra invariável que modifica um verbo, um adjetivo ou outro advérbio, exprimindo circunstância de tempo, lugar etc.

 

Não escondamos: a ABL nos oferece uma definição que não se aplica a todos os advérbios. Uma verdade parcial, portanto. A bem dizer, ela só se faz apropriada a um único tipo de advérbio: o de intensidade.

 

Isso nos faz pensar que, no antigo ginásio, nos foi repassado algo inadequado. Peçamos ajuda ao prof. Cláudio Moreno, autor do Guia Prático do Português Correto. No volume 3, p. 257, fala sem rodeios: Pois não é bem assim; essa afirmativa, presente na maioria dos livros didáticos, só serviu, até hoje, para confundir o aluno.

 

Em seguida, Moreno põe os pingos nos is: O advérbio – o nome está dizendo – modifica mesmo é o verbo; aliás, é por detalhe que ele não se chama adverbo [...] O que acabo de dizer vale para todos os advérbios comuns – os de modo, os de lugar, os de tempo, etc. –, exceto o grupo especialíssimo dos advérbios de intensidade: muito, pouco, mais, menos, bastante [...] Estes (e só estes) podem também modificar adjetivos ou outros advérbios.

 

Complementando, abre-nos estes exemplos: Ele corre muito (modifica o verbo correr). / Ele está muito feliz (modifica o adjetivo feliz). / Ele mora muito longe (modifica o advérbio longe).

 

Voltemos à locução “muito embora”. Já acentuamos que muito, por ser advérbio de intensidade, tem um campo de atuação mais amplo. Perguntemo-nos: ele pode modificar a palavra embora?

 

No geral, embora corresponde a uma conjunção concessiva, nome nem sempre explicado a contento por professores. Concessão significa exceção à regra: embora chova, irei ao estádio. Isto é, não seria uma boa assistir a uma partida de futebol em meio ao pipocar de trovões. Mas, dada a importância do jogo,  não posso perder essa oportunidade, nem que chovam canivetes. A exceção justifica...

 

Além de ser conjunção, no mais das vezes embora é registrada como advérbio. Importante frisar que ela resultou de uma aglutinação: junção de duas ou mais palavras para formar um todo significativo, havendo perda de fonemas de pelo menos um deles. Do adjunto adverbial “em boa hora” nos veio embora.

 

Nos dias que correm, não é mais empregada nesse sentido. Com o longo desuso, o advérbio se manteve, revestindo-se, no entanto, do valor semântico de afastamento: mandei-o embora. Em Várias Histórias, acentua o inigualável Machado de Assis: Tinha vontade de ir embora e de ficar.

 

Com essas luzes, em princípio não se justifica a impugnada construção muito embora. Repisemos. Muito, advérbio de intensidade, não pode modificar conjunção. Ocorre que, na citada expressão, embora é conjunção concessiva. Bem por isso, a norma culta não pode aboná-la.

 

Ou melhor: não poderia. É de estranhar que o próprio dicionário da Academia Brasileira, ainda que documente a palavra embora apenas como conjunção e como advérbio, dá um tropeção daqueles. Insere a apontada locução precisamente no campo reservado à conjunção. Eis a pérola: O número de leitores não aumentou significativamente, muito embora a quantidade de publicações tenha aumentado. Xô, satanás!

 

No livro Não Erre Mais!, 31. ed., p. 143, Sacconi nocauteia de vez o “muito embora”, reputando-o de combinação esdrúxula.

 

Sei, não nego, que esbarramos com muito embora em autores de peso. Tenho arquivado exemplos pinçados em dicionários e em manuais de redação jurídica. Talvez isso explique por que o mercado forense continua a usá-lo à farta. Se embora, neste caso, se qualifica como conjunção, como associá-la a um advérbio? O povo tem razão: durma-se com um barulho desses!

 

Não por acaso, no Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, o professor Cegalla exibe verbete próprio para “muito embora”. Daí se colhe esta passagem: Muito embora, sob o ponto de vista doutrinário, considere-se o casamento como um contrato, a verdade é que seu caráter institucional é transcendente.

 

Continua o gramático: Visto que as conjunções não podem ser modificadas pelos advérbios, é despropositado usar muito antes de embora, como fez o autor da citada frase. Acentua haver, nela, dois outros desvios da boa linguagem: sob o ponto de vista – em vez de do ponto de vista –  e um deslize na colocação pronominal. Correto, no caso, é se considere, com o pronome colocado antes do verbo, exigido pela conjunção embora.

 

Para finalizar, pontua: Passada a limpo, a frase acima ficaria assim: Embora, do ponto de vista doutrinário, se considere o casamento como um contrato, a verdade é que seu caráter institucional é transcendente.

 

Fechando o cerco, é hora de pormos as cartas na mesa: há sempre muito que aprender nos escaninhos da língua nossa de cada dia. Entre amigos, conversa descontraída, numa língua em mangas de camisa e pé no chão, o uso de “muito embora” não deve ser merecedor de repugnância, tido por algo asqueroso.

 

Por estar a linguagem jurídica inserida no âmbito da língua culta – que reclama a forma mais limpa de correção –, é de todo recomendável que evitemos a indigesta locução “muito embora”.

 

Basta!

 

Cuiabá, MT, 29-4-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.