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06.05.2016 14:25

Dicas do Professor Germano - Nada a ver ou Nada haver?
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 Qual o correto: nada a ver ou nada haver?


Dois dias antes de sua morte, Monteiro Lobato, o maior escritor da literatura infantil, declarava: Meu cavalo está cansado, e o cavaleiro tem muita curiosidade em verificar, pessoalmente, se a morte é vírgula ou ponto-final.

 

Sirvo-me dessa afirmação para acentuar que, neste 6 de maio, três anos após a despedida do inesquecível prof. Benedito Figueiredo, sua viagem física não foi bastante para nos distanciar. Leia-se: não nos foi ponto-final. É lembrança assídua em meio aos que beberam – por anos seguidos – de sua cultura. Soberano, passeava pelos mais variados temas da língua portuguesa. Como sua falta nos faz falta!

 

A proposta desta coluna perturba a mente dos que não são muito afeitos aos meandros da língua. Afinal, qual é a forma correta de escrever: Minha opinião nada tem a ver com a sua. Ou: Minha opinião nada tem haver com a sua.

 

Havemos de convir nisso: trata-se de confusão de todo compreensível, assentada no fato de que o h, na pronúncia, não tem som. Isto é: na fala, nada haver soa igual a nada a ver. No entanto, cotejadas as duas orações, postas rosto a rosto, a expressão nada a ver aponta para o verbo ver: Isso não tem nada a ver com você. Vale por: isso não tem nada em comum com você.

 

A verdade manda dizer que “nada haver” é inaceitável. Se assim é, repisemos o que significa nada a ver com. Em suma, expressa esta acepção: não ter relação alguma com aquilo de que se está tratando.

 

Vejamos: Meus primos são como água e vinho, não tem nada a ver. / O nome Maria Isabel nada tem a ver com maria-isabel: refogado de carne-seca com arroz. / O orador se retorcia em digressões que não tinham a ver com os interesses da maioria. / Você sabia que depredar – ligado a pilhagem, a roubo – nada tem a ver com pedra?

 

Sei que “nada haver” trafega sem sinal vermelho, desfilando todo prosa pelos escritos de nossos alunos. O que dói, de fato, é que o mesmo ocorre com a imprensa, nem sempre atenta a esses cochilos. Que pena continuem alguns jornalistas a maltratar a língua, não esquecidos de que cabe a eles usá-la como ferramenta de trabalho. E o respeito ao leitor, onde fica?

 

Esclareçamos de uma vez por todas: no sentido de estar relacionado ou não com algo, as expressões que merecem nossa guarida são tudo a ver e nada a ver. Joguemos na lata de lixo o desqualificado “nada haver” e seu fiel companheiro “tudo haver”. Tão insossos como comida de hospital.

 

Embora assim, na língua mais asseada, outra forma de escrever deve ser preferida.  É de uso mais corrente lá pelas bandas de além-mar. Sim, em Portugal, tudo que ver corre numa boa. Em vez da preposição a, recorre-se à palavra que.

 

Raquel de Queirós – a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras –, em O caçador de tatu, nos presenteia: Ambições de homem não têm nada que ver com as complexas, sutis e envolvidas ambições da mulher. Agora, o gramático João Ribeiro, em Curiosidades verbais: Um imperador alemão aparece com o nome Maximiliano, que nada tem que ver com os precedentes.

 

No Manual de redação jurídica, José Maria da Costa, que se distingue por ministrar cursos de aperfeiçoamento de juízes, encarece: A presença do réu no local do crime tem tudo a ver com a autoria (correto). A presença do réu no local do crime tem tudo haver com a autoria (errado). De nossa parte, acrescentemos: A presença do réu no local do crime tem tudo que ver com a autoria. De correção inquestionável.

 

Cuidadosos, deixemos o tudo a ver e o nada a ver para uma linguagem descontraída, aquela do fim de semana, toda combinando com camisa polo, bermuda e sandália havaiana. Essas expressões não transitam pela mesma calçada onde anda quem, estiloso, veste terno e gravata.

 

Ao publicarmos um texto, é desculpável que nos escape alguma falha de digitação. Na 28. ed.  do Não erre mais!, no prefácio, referindo-se a algo do período anterior – brincadeiras, ironias –, diz o autor: Nada tem que ver com desprezo ou menos-prezo aos ignorantes. No caso, omitiu-se o necessário acento: têm.

 

Na 31. ed., o acerto foi restaurado. A exigência do plural – têm –, quem a define é o sujeito, expresso antes. Não nos esqueçamos: ele é que governa o verbo. Parabéns ao autor!

 

Vi, outro dia, a inadequada expressão inimigo fidalgal. Esse adjetivo deriva de fidalgo, homem nobre, da corte. Da mesma família de fidalguia, fidalguice. Ora, isso nada que ver tem com figadal, palavra que se associa a fígado.

 

Figadal é sinônimo de colérico, vingativo, algo visceral, portanto profundo. O fígado era o órgão que os antigos consideravam a sede do ódio. Daí a correção: inimigo figadal. De igual modo, ódio figadal.

 

Dizemos – ou devemos dizer – gás lacrimogêneo, o que provoca lágrimas. A cebola é um lacrimogêneo, isto é, ela nos faz chorar. E não é que topamos por aí com gás lacrimogênio? Talvez seja coisa de gênio. Lacrimogêneo nada tem que ver com lacrimogênio. Mancada pura.

 

Todos os dicionários documentam o correto: lacrimogêneo. Está lá no dicionário da Academia, o DELP: A polícia dispersou os manifestantes com gás lacrimogêneo. Infelizmente, o VOLP – Vocabulário da Academia – percorre caminho escuro: lacrimogênio. Creditemos à digitação. E bola pra frente!

 

Findemos com palavras do prof. Sacconi. Ao comentar o verbete – Não tenho nada “haver” com isso –, arremata: Na verdade, essa frase é que não tem nada a ver... Em seguida, pontifica: No português castiço, usa-se assim: Não tenho nada que ver com isso.

 

Basta!

 

Cuiabá, MT, 6-5-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.