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13.05.2016 16:45

Dicas do professor Germano - Houveram_houve
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“Houveram”: crime contra a língua

 

Em tempo de impeachment, salta-nos aos olhos que, no aceso da discussão, o terreno fica mais fértil para a produção de novas pérolas da língua. Chovem destemperos verbais. Baste-nos este exemplo: “Houveram” tantas críticas que o presidente interino da Câmara se mancou e revogou sua decisão.

 

Alimenta-nos a convicção de que uma das mancadas mais corriqueiras da língua está relacionada com o uso do verbo haver. Recorrer ao plural – houveram –, na citada frase, é de última. Porque é impessoal, não varia. No quadro-negro de nosso dia a dia, apaguemos de vez esse “houveram”. Nele é que residem os maiores descalabros.

 

Principiemos por entender que impessoal significa, literalmente, sem pessoa. Portanto, sem sujeito. Ora, se o verbo não tem sujeito próprio, não deve de jeito maneira ser usado no plural. Eis aí duas coisas que não se bicam: verbo impessoal e uso do plural. São vinho de outro tonel. Misturá-los, nunca. Se, no colégio, nosso professor de Português não ensinou assim, peçamos nossa grana de volta. Mais do que justo.

 

Demos outro passo: o verbo haver, no sentido de existir, bem assim no de ocorrer e de realizar-se, é impessoal. Não vá, pelo amor de Deus, o advogado a uma audiência no fórum dizendo, sem mais nem menos, descalabros como estes: “Haviam” muitos processos em tramitação./ “Houveram” duas sessões ordinárias.  

 

Por ser verbo impessoal, o substantivo que o acompanha não pode ser sujeito: Não o vejo há cinco anos./ Na confusão, houve sopapos para todo canto./ Haverá eleições municipais neste ano./ Havia meses que não chovia. Nessas frases, anos, sopapos, eleições e meses funcionam como objeto direto.

 

Portanto, em casos semelhantes, o que nos cabe é mandar o plural bater à porta de outra freguesia. Da mesma forma como Cristo enxotou os vendilhões do templo, enxotemos o “houveram” acidentes. “Haviam” comentários maldosos, nem a pedido de majestades.

 

Não nos esqueçamos disto: com verbo auxiliar, também este assume a forma impessoal, isto é, não aceita o plural. Daí: Deve haver bons advogados nesta Comarca./ Está havendo manifestações violentas./ Vai haver outras greves. Jamais este monstrengo: “devem” haver bons advogados.

 

De outra parte, se trocarmos haver pelo sinônimo existir, que é verbo pessoal, este passa a variar normalmente. Com uma diferença: o substantivo que lhe faz companhia não é mais objeto direto. É o próprio sujeito: Existiam debates acirrados./ Existem muitos juízes probos neste Tribunal.

 

A concordância também corre na boa quando antecedido do auxiliar, verbo que carrega o tempo: Deviam existir dois processos para sentença./ Hão de existir alunos interessados neste curso.

 

Na linguagem culta, usar o verbo ter – seguido ou não de auxiliar – com o sentido de existência não é prática merecedora de elogios: Tinha apenas um advogado na sessão. / Deviam ter dois advogados no fórum. Em vez de – vai ter dois jogos amanhã –, digamos com acerto: vai haver dois jogos amanhã. Bem melhor.

 

Já no feijão com arroz do dia a dia, o uso do verbo ter por haver não caracteriza pisada na bola. Até Carlos Drummond o fez:  No meio do caminho tinha uma pedra... Prevaleceu a linguagem poética. Um adendo: gramáticos mais arejados não recriminam esse uso, acolhendo-o sem constrangimento.

 

Distinção muito clara transpira a preposição a, se confrontada com . Se a substituição por faz se fizer a contento, não vacilemos: devemos usar ... Sempre indica passado: Saí do fórum há tempo./ Os autos estão conclusos há cinco dias./ Ele chegou há pouco./ De há muito (= faz muito) não o vejo.

 

Doutro lado, nunca devemos recorrer ao quando a frase se refere a futuro ou a distância: Devo me formar daqui a dois anos./ Estamos a três anos do tricentenário de Cuiabá. / Morávamos a dois quilômetros da praça. / A trinta dias vence a duplicata.

 

A ser assim, esta frase padece correção: O advogado chegará daqui há dois dias. No caso, a troca do por faz não “rola”, diria o povo. Daqui a exprime ação futura. Acertado é: O advogado chegará daqui a dois dias. De igual modo: Daqui a pouco, a sentença será publicada.

 

Notemos a diferença – a depender do contexto – entre há tempo e a tempo: o socorro chegou há tempo, isto é, faz tempo. Temos aí tempo decorrido. Agora o novo sentido: o socorro chegou a tempo, isto é, em tempo, dentro do prazo.

 

Há tempo também se faz propício quando corresponde a existe tempo. O texto bíblico confirma: Há tempo de plantar e tempo de colher. Mais esta: Há tempo para pequeno descanso.

 

Noutro dia, topei com esta frase: de hoje há três dias correrá o prazo. Inadequada. Isso é erro bravio, do mato fechado. Vamos combinar: não devemos usar quando a oração expressa tempo futuro. Passada a limpo, assim fica a frase: de hoje a três dias correrá o prazo. Mais apropriado ainda seria: fluirá o prazo.  

 

Uma boa dose de atenção nos livrará de muitas ciladas do verbo haver. Fundamental é termos sempre presente que, no sentido de existir e ocorrer, ele fica sempre no singular. Já é meio caminho andado.

 

Em tempo: na acepção de comportar-se ou de resolver, até mesmo o houveram assume status de nobreza: Os advogados se houveram com correção na defesa desta causa. / Diante do risco iminente, os alunos houveram por bem recorrer à diretora. Batamos palmas para este uso.

 

Seja como for, usado como impessoal – sem sujeito, portanto –, é sabida e definitivamente condenado o uso de haver no plural. No Judiciário, que se prende ao linguajar culto, o advogado que cai nesta esparrela depõe contra si mesmo. Mais que isso: deprecia  sua classe. Houveramdois crimes, nunca mais. Não sentiremos saudade dele. Babau!

 

Basta!

 

Cuiabá, MT, 13-5-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.