30.03.2017 10:03
Dicas do Professor Germano - Venda à vista ou venda a vista?
Num modo de se expressar bem descontraído, diz a Profa. Dad Squarisi: Crase é caso de amor. Dois aa se encontram, se olham e caem de paixão. Decidem, então, juntar os trapinhos.
Vale lembrar que o tema da crase instiga vivo interesse. A dúvida estampada no título desperta curiosidade ainda maior quando, na tentativa de contorná- -la, recorremos ao artifício mais elementar. Concluímos, mesmo assim, que o problema ficou sem a esperada solução.
Este, o recurso engenhoso: substitua mentalmente a palavra feminina por uma correspondente masculina. Se o a ou as se transformar respectivamente em ao ou aos, é sinal de que, diante do feminino, se deve empregar a crase. Uma vez que se diz “Eu vou ao campo”, na oração “Eu vou à cidade” deve ser craseado o a.
Aplicando o tira-teima ao caso vertente – venda a/à vista –, ninguém acolheria como adequada a forma paralela venda “ao” prazo. Bastaria isso para que, de pronto, viéssemos a descartar venda à vista. Por exclusão, sentindo- -nos donos da verdade, ficaríamos tentados a abraçar a alternativa sem crase.
Que ninguém nos ouça: nos dias que correm, venda a vista, não! Permitam-me corrigir: melhor, não! Baita escorregada? Nem tanto...
Pisando firme no terreno do uso – aliás, sempre um bom conselheiro –, somos convidados a caminhar por outra estrada. Certo mesmo é que, neste caso, não tem valia alguma a regra prática de substituir a por ao.
Vem-me à mente uma afirmação de Aires da Mata Machado, gramático pra lá de respeitado da segunda metade do século passado: a crase é casca de banana em que tem escorregado muito cavalheiro ilustre.
Concordo. As mensagens da internet não nos deixam mentir: trazem à cena mensagens destrambelhadas, feitas a machado e a martelo. Não existe um nada de cuidado: Faça “à” Deus três pedidos. Há três coisas que podem levá-lo “á” destruição. Sem comentários...
Voltemos ao foco do artigo. A dúvida nos assalta porque, se o correto é venda a prazo – havendo aí apenas a preposição pura (a) –, deveria suceder o mesmo com venda a vista. Dissemos bem: deveria.
Hoje, contudo, o modo mais apropriado de escrever é venda à vista. Temos aí uma falsa crase. O acento se justifica para evitar possível ambiguidade, isto é, duplicidade de sentido. Digamos mais: a virtude número um do texto responde pelo nome de clareza. Cabe a ela apagar qualquer possibilidade de mal-entendidos.
Em meio aos gramáticos, de uns tempos para cá corre vitorioso que, em locuções que exprimem meio ou instrumento, o à deve vir acentuado. Diferença existe entre pintar a mão – passar tinta na mão – e pintar à mão, isto é, com o uso das mãos. Matar a sede é saciá-la, bebendo. Já matar à sede é deixar sem beber, negar água a alguém.
De igual modo, vender a vista, sem acento grave, passa a ideia de que vendemos os olhos, quando não uma paisagem qualquer. Vender à vista, por sua vez, é fazer pagamento imediato, na hora. Pagar algo em cash.
Vender à prazo, eis uma construção que não merece guarida. Nem a pedido de São Brás. Afinal, constitui erro graúdo usar crase antes de masculinos: carro “à” álcool, bebê “à” bordo. Diz um provérbio popular: A gripe vem a cavalo e volta a pé. Português nota mil!
Um adendo: antes do masculino, a crase só tem vez quando se pode subentender uma palavra feminina: Ele escreve à Machado de Assis (à maneira de). Igualmente nos casos em que, mesmo no plural, houver elipse real – não forçada – de palavra feminina: Fui à Roubos e Furtos (Delegacia). Vou à João Mendes (Praça).
Portanto, calorosas palmas tão só para pagamento a prazo. No mesmo rumo, acertado é dizer pagamento a crédito: caracteriza o recebimento futuro, podendo ser efetuado de uma só vez ou em prestações.
De onde em onde, topamos com um ou outro autor que defende venda a vista, como sinônimo de pagamento com dinheiro. Ainda que, tecnicamente, não evidencie a presença dos dois aa, preferível é acolher venda à vista. Fiquemos com Celso Pedro Luft: com acento, é tranquilamente majoritário.
Este, por sinal, era o magistério do brilhante professor gaúcho: a tendência da língua é acentuar o a inicial das locuções femininas (adverbiais, prepositivas e conjuntivas), mesmo quando não é crase [o grifo é nosso].
Confrontemos estas duas frases: Ele saiu irritado, batendo a porta [= fechando-a com força]. Educado, bateu à porta [= dar pequenas pancadas para que alguém atenda]. Como se observa, a crase aí é muito bem-vinda. Despacha com qualquer dubiedade de sentido.
Bom é se diga que esse proceder ganha cada vez mais adeptos. A significativa quadrinha de Cineas Santos vem comprová-lo: O amor bate à porta / E tudo é festa. O amor bate a porta / E nada resta. Que primor!
Conclusão. Se a dúvida nos atacar, apelemos para a crase: venda à vista, escrever à máquina, fechar a porta à chave. Não embalemos nosso texto nas águas turvas da ambiguidade. Mais que isso: se nos bandearmos para o partido da clareza, andaremos sempre em boa companhia.
Basta!
Cuiabá-MT, 30-3-2017.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.