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Poder Judiciário de Mato Grosso

 
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08.07.2015 17:39

O uso nada elegante do “mesmo”
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O uso nada elegante do “mesmo”
 

Quem escreve deve ter um mínimo de preocupação com seu estilo. E pensar que houve quem dissesse: beleza não é tão fundamental! Como não? Imaginemos algo assim: Comprei um livro e logo me desfiz do mesmo. Melhor – mil vezes melhor! – seria dizer: Comprei um livro e logo dele me desfiz.

 

A verdade é que mesmo não se presta para substituir nomes nem pronomes: Fui visitar meu amigo Luís e o mesmo me deu um presente. Troquemos o indigesto mesmo por construções mais primorosas: Fui visitar meu amigo Luís, que me deu um presente / e este me deu um presente / e ele me deu um presente. De longe, melhores. Alguém duvida?

 

O dicionarista Aurélio dá o recado: Parece conveniente evitar o emprego de o mesmo... como equivalente do pronome ele ou o: Vi ontem Fulano e falei com o mesmo a respeito do seu caso. Mais adiante complementa: No exemplo se dirá, mais apropriadamente, falei com ele ou falei-lhe (por “falei com o mesmo”).

 

Aurélio, sem desmerecer os que recorrem ao deselegante mesmo, se mostra cauteloso, pois logo a seguir aponta um cochilo desse jaez – sinônimo de tipo, espécie – em Camilo Castelo Branco, grande escritor português. Consultem a passagem no dicionário. Está a provar que a perfeição não é coisa de simples mortais, susceptíveis de melhora sempre.

 

Seja como seja, há uma verdade patente, e não podemos trancá-la a sete chaves: a maioria dos autores recomenda que evitemos esse emprego traquinas do mesmo. Vai um contraponto de peso: Houaiss – pode até parecer algo estranho – acolhe esse uso insosso.

 

Vamos por partes. No verbete antedata – muito corrente na linguagem jurídica –, exibe esta definição: em documento ou outro escrito, data falsa e anterior àquela em que o mesmo foi elaborado.

 

Mais estranho, contudo, é verificar que, no verbete mesmo, o dicionarista não faz alusão alguma a esse emprego, malvisto pelos manuais de redação. A confirmá-lo, em transitar – verbo que goza de livre curso no Judiciário – alude à expressão transitar em julgado. Confere a ela este sentido: ter a sentença se tornado caso julgado, por não se ter recorrido da mesma dentro do prazo estipulado para tal.

 

Ainda que o Houaiss abrace essa prática, ela é, no geral, espinafrada pela norma culta, que a critica sem escrúpulos nem compostura. Fica-nos esta dúvida: No caso de concurso público, como proceder? Devo seguir o dicionarista Houaiss, que é voz destoante, ou trilho a senda da maioria? Quer andar em boa companhia? Siga o caminho mais batido.

 

Em Linguagem do juiz, o Des. Geraldo Amaral Arruda adverte: o uso de mesmo em substituição ao pronome pessoal da terceira pessoa ou do demonstrativo este em nada melhora a frase. Antes, a prejudica em clareza e elegância.

 

Na mesma direção, Cegalla, no Dicionário de dificuldades da língua portuguesa, lança mão deste conselho-imposição: Evite-se empregar mesmo como substituto de um pronome. Alinha alguns exemplos em que enfatiza a forma de estilo desvigorado. Ao acaso, um deles: O pescador salvou o náufrago e ainda ofereceu ao mesmo a sua cabana. Recomenda substituamos “ao mesmo” pelo pronome lhe: e ainda lhe ofereceu a sua cabana.

 

É de vincar que mesmo, no valor de reforço ou junto de artigo, com a acepção de “a mesma coisa”, merece aplausos. Vamos lá: O magistrado expendeu os mesmos argumentos. Outro mais: Dispêndio – que significa gasto excessivo, despesa – se escreve com i, o mesmo ocorrendo com o adjetivo dispendioso, dele derivado.

 

O Prof. Kaspary, em sua preciosa obra Habeas verba – que entreabre questões as mais variadas do mundo jurídico –, na p. 202 insere esta pérola, a ser refeita: Mesmo se admitindo que a preliminar foi suscitada a tempo, a mesma não pode prosperar.

 

O primeiro mesmo, vale lembrar, foi usado com acerto. Trata-se de palavra denotativa carregando o sentido de concessiva, na mesma linha de embora, ainda que. Trocá-la pura e simplesmente pela conjunção correspondente, sem alterar o tempo verbal, é incorrer num deslize imperdoável. Mancada – e das graúdas.

 

Por que isso? A conjunção embora, disto não nos esqueçamos, exige seu verbo sempre no subjuntivo, jamais no gerúndio. Certo, portanto, é afirmar: Ele viaja muito, embora não seja rico. Embora trabalhasse, não conseguiu comprar o carro. De outra parte, associar essa conjunção ao gerúndio nem Deus há de deixar. Jogue no lixo o embora sendo, o embora se admitindo tal coisa. O santo da conjunção embora não bate com o do gerúndio.

 

Quanto ao uso de “a mesma”, ainda na frase de Kaspary, o autor sugere seja substituída pelo pronome ela. Limpa de senões, seria de esperar que, no Judiciário, assim viesse escrita: Mesmo se admitindo [ou: embora se admita] que a preliminar foi suscitada a tempo, ela não pode prosperar.

 

Sempre tive comigo que a razão de as pessoas se socorrerem desse entediante mesmo se deve à tentativa de evitar a repetição de um nome/pronome. Cá entre nós: nobre que seja o objetivo, o resultado acaba por apequenar o autor da façanha, reveladora de indigência verbal. Ou indigência de talento?

 

Não escapam desses equívocos até mesmo diplomas legais. Vale a pena consultemos o verbete mesmo no Habeas verba. É uma lição riquíssima. Imperdível. Nem tanto como o Ballet de Bolshoi, mas ...

 

Algumas frases em que o emprego se revela irrepreensível: Isso deu na mesma. Fiquei na mesma. (Em ambas, elipse da palavra coisa.) / Paulo não estuda português. O mesmo se diga de sua mulher. / Os escoteiros levaram os pertences consigo mesmos. / A casa está mesmo abandonada. / Mesmo a família lhe negou apoio. / Pai e filho tinham o mesmo jeitão. / Elas mesmas subscreveram a inicial. / Nesse mesmo ano, nasceu-lhe o filho mais velho. / As janelas se abriram por si mesmas. /  “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso.”

 

Fiquemos combinados: mesmo não tem por função substituir pronome. No frigir dos ovos, acertada é a conclusão do Prof. Kaspary: não se questiona a gramaticalidade desse emprego, mas, isto sim, sua qualidade estilística. Diríamos mais: casos há em que basta eliminá-lo, e a frase fica perfeita.

 

Peçamos emprestadas as palavras do Prof. Celso Pedro Luft a propósito do enfadonho mesmo: Geralmente o emprego desse o mesmo, a mesma denota mau gosto ou incapacidade de escrever melhor.

 

Não nos esqueçamos de que os poetas gozam de privilégio. Sendo-lhes tudo permitido, coloquemos neste pacote a repetição, de todo propositada: “a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim”.

 
Basta!
 
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.