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Poder Judiciário de Mato Grosso

 
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08.05.2019 10:15

Mulher precisa provar virgindade para não ter casamento anulado
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No ano de 1939, quando Getúlio Vargas governava o Brasil após o golpe que instaurou o chamado ‘Estado Novo’, Pedro*, um comerciante de Cuiabá, conheceu a jovem Florinda*. Após o encantamento inicial, começaram a namorar, o relacionamento ficou cada vez mais sério e acabaram ficando noivos. Foram dois anos juntos, comprando enxoval para a futura casa em comum, até a chegada do tão sonhado casamento. O aguardado enlace foi selado em uma sexta-feira (27 de junho de 1941) e, no dia seguinte, Florinda foi devolvida à própria mãe pelo marido. A acusação: não ter se casado virgem.
 
Essa é mais uma das histórias contidas no Arquivo do Fórum de Cuiabá, descobertas por meio do projeto Memória Judiciária, desenvolvido pela Coordenadoria de Comunicação do Poder Judiciário de Mato Grosso, e que integra a séria especial “145 anos: o Judiciário é história”, em comemoração ao aniversário do Tribunal de Justiça (1º de maio de 1874). A narrativa demonstra os avanços sociais obtidos nas últimas décadas, em especial pelas mulheres, que, como Florinda, se viam vítimas de uma sociedade extremamente machista e opressora.
 
Na segunda-feira seguinte ao casamento, em 30 de junho de 1941, a ‘Acção Ordinária de Nulidade de Casamento’ foi autuada no Juízo de Direito da Comarca da Capital. “Tremenda, entretanto, foi a sua decepção, quando ao realizar no seu leito conjugal o ato que constitui a função principal do matrimônio, chegou a dura realidade de que fora enganado, encontrando sua esposa desvirginada”, alegou o advogado na peça inicial. Pedro acabou devolvendo a esposa à família dela, “por repugná-lhe aceitá-la como tal”. O homem alegou ter sido enganado durante todo o período de noivado, pois a noiva teria ocultado “a sua prometida tão grave falta – a mácula de sua desonra”.
 
Nessa mesma segunda-feira o juiz responsável pelo caso mandou que Florinda fosse citada para contestar a ação. No dia seguinte, não obstante ter sido devolvida à própria família no dia seguinte ao casamento, a mulher ainda teve que passar por um segundo exame, pleiteado pelo marido, como medida preventiva.
 
Pedro queria saber as respostas para três perguntas: 1) Estando a suplicada desvirginada, é antigo ou recente esse desvirginamento? 2) Há quanto tempo? 3) Tendo o casamento se realizado no dia 27 deste, em cuja noite teve o suplicante relações sexuais com a suplicada, é possível que o defloramento se tenha dado em praso (sic) tão recente, isto é, no referido dia 27?.
 
Dois peritos foram nomeados para realizar o exame: os médicos Agrícola Paes de Barros e Antonio de Pinho Maciel Epaminondas, assim como um assistente técnico indicado por Pedro. Ao contrário do que pensava o marido, eles responderam que o ‘desvirginamento’ seria recente, com menos de oito dias, e que seria possível que Florinda tivesse tido sua primeira relação sexual exatamente no dia do casamento.
 
Ao contestar a ação judicial, a defesa de Florinda destacou os predicados da mulher e questionou a boa fé do noivo. “Moça modesta, de vida recatada e de conduta irrepreensível, qual não foi o seu abalo moral ao ver, quando de sangue tinto ainda o lençol do leito conjugal, selo do seu desvirginamento, conduzida, como se rameira fosse, à casa materna e entregue à família, como uma despudorada. De quanto é capaz a miséria humana! (...) O autor conhecia a verdade: ser a contestante virgem. O seu modo de vida irrepreensível e o próprio ato sexual com resistência e derramamento de sangue não deixaram dúvida. Acrescente-se a isso o exame pericial presidido por V. Excia, com assistência do Dr. Promotor de Justiça e levado a efeito pelos médicos legistas oficiais, do conhecimento imediato do autor”, ressaltou o advogado de Florinda.
 
No total, ela teve que se submeter a dois exames, com peritos distintos, que comprovaram sua recente perda de virgindade. O primeiro exame médico legal feito na paciente, no dia seguinte ao casamento, também constatou “defloramento recentíssimo (menos de 24 horas)”.
 
Chamam atenção detalhes do processo, como o fato de Florinda ter apresentado o lençol e uma roupa utilizados na noite de núpcias, manchados de sangue, para supostamente comprovar que até então ela não tinha tido relações sexuais. “Que o próprio lençol do leito nupcial de hontem e que será apresentado a esse juízo, tinto de sangue do imen (sic), é prova irrefragável da grande infâmia que lhe atira o seu noivo de hontem hoje marido”, narra trecho do processo.
 
Apesar de todo o transtorno causado à vida de Florinda e de sua família, em 11 de agosto de 1941, menos de dois meses após a ação ter sido ajuizada, o advogado de Pedro apresentou uma petição desistindo da ação ordinária de anulação de casamento anteriormente proposta. Ele explicou que Pedro teria se reconciliado com a esposa, “por ter verificado a improcedência da referida ação, cujo laudo pericial junto aos respectivos autos bem demonstra o equívoco do suplicante”. Ou seja, mesmo após ter passado por situação extremamente vexatória e ter sua intimidade exposta, Florinda, vivendo à época numa sociedade conservadora e machista, ainda assim preferiu manter o casamento a viver como mulher divorciada.
 
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das partes.
 
Leia abaixo matérias sobre a série ‘145 anos: o Judiciário é história’.
  
 
Lígia Saito (texto e fotos)
Coordenadoria de Comunicação do TJMT
imprensa@tjmt.jus.br
(65) 3617-3393/3394/3409