Enquete
Fechar
Enquetes anteriores

Poder Judiciário de Mato Grosso

 
Notícias

19.03.2015 10:28

O uso de “envolvendo”: pau para toda obra
Compartilhe
Tamanho do texto:

Ainda em casa, aprendi que devemos ser pródigos em elogios, avaros em censura. Muitos dizem erradamente ávaro: é o unha de fome, o pão-duro. Se bem assim, no que toca ao bom emprego das palavras, relevante é que chamemos a atenção para certos deslizes.
 
José Saramago, Nobel de Literatura em 1998, é dono de uma afirmação que se afeiçoa ao tema de hoje: Quem de palavras tem experiência sabe que delas se pode esperar tudo. Dito de outra maneira: enganadoras, as palavras podem nos conduzir a ciladas.
 
É o caso do gerúndio “envolvendo”, algo modernoso, empregado em situações por demais estranhas. E saber que pode ele ser substituído por termos de longe mais apropriados.
 
Para principiar, este pedaço de frase estampado há dias no Jornal Nacional: o “incidente” envolvendo a Petrobras... Por que não incidente alusivo a Petrobras? Ou, mais prático ainda, por que não incidente da Petrobras?
 
No fundo, no fundo, o culpado é o verbo envolver. Afinal, ele envolve carradas de sentidos. Não encontrando, à mão, outra palavra que lhe faça as vezes, que se encaixe ao contexto pretendido, o repórter ou o escritor pinçam o estropiado gerúndio. Usam-no para qualquer caso, empobrecendo-lhes o texto. Diria o povo: é pau para toda obra.
 
É hora de fazermos do dicionário um amigo mais chegado. Consultado, de imediato a resposta. Envolver significa abranger, enrolar, enfaixar, encerrar, cercar, misturar, implicar, enredar, cobrir, dissimular, disfarçar, compreender. Em suma, um mundo de sinônimos.
 
Bem empregado, esse verbo propicia frases estilosas: O réu queria envolver o juiz em amizade para se beneficiar da sentença. Sua beleza envolvia a todos. Mais esta, no sentido de dissimular, ocultar: No Brasil, a nuvem do tempo envolve todos os escândalos, por piores que sejam, em completo esquecimento. Oportuna ao momento. Aliás, sempre.
 
Voltemos ao nebuloso gerúndio: Um acidente envolvendo dois helicópteros... Um choque envolvendo um ônibus e um trem complicou o trânsito. Faça-o sem rodeios: um acidente de/com dois helicópteros, um choque entre um ônibus e um trem...
 
Dias atrás topei com esta feiura: um livro envolvendo temas regionais. Se recorrermos à preposição com ou ao adjetivo referente, a frase ganha em clareza. Jogue esse envolvendo na lixeira. Construa assim: um livro com temas regionais. Ou: um livro referente a temas regionais. Quando não esta: um livro ilustrado com temas regionais.
 
Já passou da hora de riscarmos, de nossas peças jurídicas, essa graçola linguística. Se há maionese azeda, o mau uso desse envolvendo é certamente exemplo patente. Não escorreguemos nele.
 
Para suprirmos esse desvio, duas soluções são bem-vindas. Primeira: substituía o incômodo envolvendo por uma preposição. Notadamente estas: de, com, entre.
 
Prefiramos dizer acidente de ônibus a acidente envolvendo ônibus. Em vez de houve uma discussão envolvendo os alunos, lance mão desta: houve uma discussão entre os alunos.
 
Um segundo recurso: trocar o desgastado envolvendo por adjetivos à semelhança destes: alusivo, associado, referente, respeitante, resultante.
 
Vejamos: “Incidente” envolvendo a corrupção na maior empresa do Brasil. Faça as pazes com uma construção bem melhor: “incidente” resultante da corrupção...
 
Embora seja adequado afirmar que o acidente envolveu despesas médicas e hospitalares, isso não significa seja igualmente acertado fazermos referência a acidente envolvendo despesas médicas e hospitalares. Escandaloso. Tanto quanto dizer que o projeto envolvendo pesquisa foi aprovado. Mande-o bater à porta de outra freguesia.
 
A continuarmos nessa escalada, dia chegará em que, afoitos, haveremos de dizer caixa “envolvendo” lápis, pasta “encerrando” documentos, apartamento “contendo” dois quartos. Vade retro, satanás!
 
Não esqueçamos disto: escrever bem é eleger o que melhor soa para o contexto.
 
Basta!
 
Professor Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.