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Poder Judiciário de Mato Grosso

 
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10.06.2016 09:41

Dicas do Professor Germano - Restar
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Construção indigesta: a lei restou revogada

 

Pretendia, de uma tacada, tratar de dois verbos – restar e resultar –, porquanto encerram soluções que se aproximam. Foi mais determinante, no entanto, o introito de uma das homilias do padre Antônio Vieira: [...] O sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

 

            Por outras palavras, o autor dos mais notáveis sermões assegurou que ter uma só cor, um só objeto, significa se limitar à mesma ideia, ter um só argumento como central. Foi o bastante para acatar sua recomendação.

 

            Principiemos com a concordância verbal de restar: é um tanto diferente porque, quase sempre, seu sujeito vem após o verbo. Um motivo a mais para que lhe emprestemos toda nossa atenção: Restaram (e não “restou”) alguns processos. / Da juventude nos restaram (e não “restou”) recordações mil.

 

Fazer, sobrar e bastar seguem a mesma trilha de restar: Faltam (e não “falta”) ações concretas do governo. / Sobraram (e não “sobrou”) doces na festa. Bastam (e não “basta”) estes exemplos. Negritamos o sujeito, termo que governa o verbo.

 

Cuidado! O capeta está sempre de plantão, à espreita dos incautos. A primeira coisa que fazer – para não machucar a concordância verbal – é identificar-lhes o sujeito. Não caia no conto do vigário: o núcleo do sujeito será sempre um substantivo sem preposição.

 

Sem mais preâmbulos, centremo-nos no que nos interessa. Não conta com a simpatia do grosso dos autores o uso de restar como verbo de ligação: A denúncia desta ação restou improcedente. Melhor seria que lançássemos mão de algum torneio verbal. É o que veremos.

 

Passeemos um pouco pela literatura. Consultados os dicionários Houaiss, Aurélio e Sacconi, nenhum deles documentou restar como verbo de ligação. Nem mesmo Francisco Fernandes e Celso Pedro Luft, em seus dicionários específicos de regência verbal. Convite claro a que fiquemos com o ditado do povo: estrada batida não tem errada. É seguir toda a vida.

 

Embora assim, mesmo sabendo que, no mais das vezes, os autores se postam contra construções como O crime restou provado nos autos, os militantes nas lides forenses recorrem a elas sem ficar vermelhos, nem um tiquinho que seja.

 

Será que, num dia, a força do uso haverá de consagrar o combatido restar, obrigando-nos a engoli-lo contra a vontade, da mesma forma como degustamos o amargo jiló? O tempo dirá.

 

A construção indigitada se faz tão vulgarizada – em especial na instância jurídica –, que dificilmente será extirpada. Tenho comigo que ela, cada vez mais livre e solta, vai se alastrando como catapora, sem que consigamos dar-lhe um paradeiro.

 

Badalado no meio jurídico, o des. Geraldo Amaral Arruda, autor da conhecidíssima A linguagem do juiz, manda seu recado, em referência a restar: nenhum dicionário da língua portuguesa registra como verbo de ligação. Um parceiro de peso.

 

Nessa mesma esteira, o entendimento de José Maria da Costa, professor de cursos de aperfeiçoamento de juízes, autor que é do bem-conceituado Manual de redação jurídica. Magistrado aposentado, põe os pingos nos is. Para ele, esta frase é errônea: A acusação contra o réu não restou provada nos autos.

 

Com o intento de facilitar-nos a tarefa, propõe seja alterada para uma destas três formas que não transgridem a sintaxe: Não se provou, nos autos, a acusação contra o réu. (voz passiva sintética) / Não foi provada, nos autos, a acusação contra o réu. (voz passiva analítica) / A acusação contra o réu não ficou provada nos autos. (verbo de ligação mais predicativo do sujeito)

 

Pudemos frisar que, a cada passo, o Judiciário se socorre do inadequado restar com predicativo, regência não abonada pela norma culta. Mudar, sei disso, é quase impossível, tão arraigada está. Será que vale a pena cutucar a onça com vara curta?

 

Embora pareça luta inglória, mais acertado é que – tanto quanto possível –, procuremos saídas que, sob o manto duma elegância maior, se afeiçoem a um português não merecedor de tamanha rejeição. Correr o risco? Que o quê!

 

Não precisamos ser abalizados peritos para concluir que, em vez de dizer a lei restou revogada, nosso texto se reveste de inteira propriedade se o substituirmos por novo torneio frasal: a lei foi revogada. Esta, a forma nota dez.

 

O prof. Kaspary – em seu primoroso O verbo na linguagem jurídica – é categórico: Os gramáticos em geral, ou não registram, ou então criticam, e os dicionários não registram a construção do verbo restar com o predicativo [...] E nós, a despeito disso, nos aventuramos a empregá-la a torto e a direito. Se quisermos escapar das labaredas eternas, não usemos. Vício sem perdão.

 

Dado o apreço que devemos ter para com a língua portuguesa, limpemos nossas peças jurídicas do irritante restou comprovado, bem assim do maçante restou demonstrado. Joguemos na lixeira frases à semelhança destas: Fulano restou absolvido. / A conciliação restou “inexitosa”. Xô, feioso!

 

Basta!

Cuiabá, MT, 10-6-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.