11.10.2016 17:54
Dicas do Professor Germano - Há que se cumprir?
De novo, o complicado se. O bandidinho não frequenta a intimidade dos que escrevem. Nesta frase, associado ao verbo haver, o se tem vez? Qual é o certo: Há que ter paciência ou Há que se ter paciência? Sem delongas, a luz: a locução há que, seguida de infinitivo, encarta o sentido de é preciso, deve(-se).
Daí, só tem cabimento esta afirmação: Há que [é preciso] ter paciência. Ter paciência é o sujeito da expressão em comento. Algo assim: ter paciência [o ato de ter paciência] é preciso. Outras mais: Há que respeitar os mais velhos. Há que ter extremo cuidado no emprego de tal termo. Bem isto: sempre sem o insosso se.
Num Manual de redação jurídica, topamos com: Há que se ter cuidado com os verbos defectivos. Nem pensar. Não e não! Embora o autor da pérola seja muito badalado, o adequado é que, ao grafarmos, raspemos o deselegante se: Há que ter cuidado com... E bola pra frente. Afinal, há que zelarmos por nossa língua.
No indispensável Habeas verba, p. 284, o Prof. Adalberto Kaspary nos brinda com este exemplo: Há que levar[-se] em conta as condições psicossomáticas do apenado. Isto é dele: o se, entre colchetes, é supérfluo. Acrescenta: Sua presença desnecessária vem cumulada de erro de concordância verbal.
Analisemos a frase proposta: Há que se levar em conta as condições psicossomáticas do apenado. Se apagarmos o se, a expressão negritada passa a ser objeto direto do torneio verbal levar em conta, que vale por considerar. Temos, então, uma oração limpa, na voz ativa: Há que levar em conta as condições...
Se, em contrário, mantivermos o se, aquilo que era objeto direto da ativa se torna sujeito da voz passiva. Por estar no plural, o agora sujeito – as condições psicossomáticas... – deve levar seu verbo para o plural. Assim, não deslizamos na concordância verbal: Há que se levarem [serem levadas] em conta as condições...
De onde em onde, outra locução – não há –, igualmente seguida de infinitivo, costuma também dar as caras. Transpira sentido negativo: não é possível, não cabe. Olhos nesta frase: Não há fugir dela. Equivale a: Não é possível fugir dela. Carrega um sabor clássico. Por isso, navega tranquila pelas águas do oceano jurídico, embora nem sempre com a devida correção.
Finquemos nossa atenção em orações de todo corretas: Não há silenciar [não é possível silenciar] quanto a uma patente contradição. / Não há falar [não cabe falar] em termo inadequado. / Não houve [não foi possível] convencê-lo do apoio. / À vista de tais dados, não há negar [não é possível negar] a verdade.
Há algum tempo, orações ao feitio destas eram recriminadas. Hoje, desfrutam de nosso respeito e circulam com inteira aprovação: Não há como negar tal fato. / Não há por que recusar sua proposta. / Um acórdão do TRT-4ª enseja esta construção: ...não há como imputar responsabilidade cível aos reclamados.
É pra lá de comum esbarrarmos em construções mancas com o verbo falar. O prof. Kaspary, no se referir ao pronome se, brinda- -nos com este exemplo: No caso, não há falar em direito adquirido. Notemos a desnecessidade do se, por inadequado. Portanto, não há “se” falar em ganho de causa, nem a pedido de majestades. Em bom português: Não há falar em ganho de causa. Bonito que só!
Dois exemplos citados por Luft: Não há que fiar em lágrimas. (Pe. Vieira) / Não há que fiar em Deus em tempo de inverno. Mais um: Não há que duvidar disso. Atentemos à alteração: não há que.
Nesta coluna, demos ênfase a duas expressões: há que [é preciso] e não há [não é possível]. Peito aberto, corre por todo canto esta variante: há de. Denota obrigação, necessidade. O art. 1.826 do CC a registra: A partir da citação, a responsabilidade do possuidor se há de aferir pelas regras concernentes à posse...
Deve ser prestigiada: Se estender é com s, por que seu substantivo – extensão – se há de escrever com x? Na Gramática de Rocha Lima, esbarramos com ela: Há de se distinguir por que e porque. De igual, estes fragmentos: Não se há de estranhar que... Não se há de esquecer que... Bastem-nos para aboná-la.
No geral, neste caso, temos o se com valor reflexivo – Ele há de se explicar na delegacia. –, ou com sentido passivo. Fiquemos com Marco Maciel: Há de se levar em conta o baixo nível de credibilidade da classe política. Acertou em cheio.
Como diria Vieira, é tempo de colhermos as redes. Voltemos ao título. Nota mil é: Há que [é preciso] cumprir as leis. O grifado é objeto direto de cumprir. À semelhança desta: Há que examinar os prós e os contras. Aqui, o se não deve ter vez: é voz ativa.
Há que se cumprir as leis. Agora, com o pronome apassivador se, o verbo deveria ir para o plural, impelido pelo sujeito: as leis. Sob o manto da correção: Há que se cumprirem as leis. Algo assim: É preciso que se cumpram as leis. Forma passiva.
Seja como seja, o melhor que fazer, a despeito de vozes contrárias, é desbancar a oração passiva. Privilegiemos a ativa, dispensando o inoportuno se: Há que cumprir as leis. A experiência manda dizer que esta construção evidencia clareza de longe maior. Sem falar numa maior segurança gramatical.
Por fim, perguntemo-nos: qual é mesmo a maior virtude do texto? Montaigne, há não menos de 400 anos, já dizia: O estilo deve ter três virtudes: clareza, clareza, clareza. Precisa mais?!
Basta!
Cuiabá, MT, 7-10-2016.
Prof. Germano Aleixo Filho,
Assessor da Presidência do TJMT.